O Anfitrião, o beijo e o depois

o turista em sua cidade | foto: oticacotidiana

Setembro ainda me confunde. Não é frio, não é verão. O verão em Porto Alegre, inclusive, é um inferno de tão quente. Mas setembro é diferente, é como estar entre lugares, no meio do caminho, um intervalo. Salvador me recebeu assim: quente, dourada pelas frestas de sol em um dia nublado, com cheiro de mar e algo que eu não soube nomear. Eu não sabia que um único dia podia carregar tanto. E, ainda assim, era só isso: um dia.

Antes de chegar, já havia um roteiro pré-idealizado. Não só da cidade, mas daquela conexão que vinha crescendo em mensagens trocadas entre dias cansativos e noites de revisões de planilhas. Ele era presente, curioso, cheio de graça nas palavras. Me fazia rir com tão pouco. Me fazia querer estar ali. Em algum lugar dentro de mim, eu já esperava que fosse especial. Mas, convenhamos: que loucura achar que uma troca virtual poderia crescer num toque real. Que ingenuidade... minha ou dele?

O avião tocou o solo quente com um baque firme. Eu cheguei com expectativa, mas também com aquela armadura que carrego sem perceber: a de quem está de passagem. Hospedei-me num apartamento simples, luz entrando pelas janelas, e a cidade vibrando do lado de fora. Mas o que me deixava inquieto era o encontro. Quando ele chegou, vi de longe o sorriso meio tímido que ele deixou com o motorista que o trouxe, o jeito leve de andar. O abraço foi quase um tropeço, mas carregava alguma coisa doce. Familiar. Talvez fosse o sotaque, ou a forma como ele não desviava os olhos. Eu não sabia, mas aquilo já era o começo de uma história que, mesmo breve, me marcaria.

O beijo veio cedo. Natural. Foi minha tentativa de escapar do silêncio que ameaçava revelar demais. O que ele podia descobrir de mim? O que ele poderia descobrir do que escondo? Beijá-lo era mais fácil que explicar o que eu sentia. A gente riu, falou de bobagens, comi acarajé de um jeito atrapalhado na frente da Fundação Jorge Amado — onde guardo uma lembrança afetiva e forte daquele dia, do beijo roubado e das nossas mãos se tocando para uma foto espontânea — e ele me observou com ternura. Ele me olhava como se eu fosse uma promessa. E eu? Eu não sabia como dizer que minha mala já vinha cheia de partidas.

torta red velvet | foto: oticacotidiana

Na doceria, dividimos uma fatia de red velvet e fingimos que o tempo não existia. Um acordo implícito, sem gestos ou palavras, algo estava selado. Ele se encantava fácil, e eu adorava isso. Talvez porque, por dentro, eu nunca soube me encantar por mim mesmo do mesmo jeito. Falei de Porto Alegre, como se fosse uma ideia qualquer, dita lá atrás, quando nosso contato era só por mensagens. Uma fantasia dita com um sorriso, para não parecer desejo. Eu sabia que não levaria aquilo adiante, mas dizer "quem sabe?" era uma forma de manter a ternura viva. Só depois percebi: isso também era cruel.

Eu queria ser gentil. Não queria que ele esperasse por mim. Mas também não queria que ele fosse embora. Continuei presente o quanto pude: mensagens, curtidas, investidas descompromissadas, elogios momentâneos, até a espontaneidade comentando as músicas de Gal que ele me mandava vez ou outra. Mas, à medida que me envolvia com outras histórias em outras cidades — inclusive uma que eu sabia que não era só um caso —, comecei a achar que ele entenderia o recado silencioso. Que perceberia minha ausência disfarçada de presença. Não é assim que funciona nessas relações hoje em dia? Eu me afasto, o outro se afasta. Não é necessário se abrir, apenas suprimir e supor já resolve.

Contudo, não percebi que ele ainda estava tentando. Que, para ele, aquele dia seguia reverberando em cada tentativa de manter contato. Ele queria, eu sabia, sentia... E eu... eu fui deixando em aberto até um ponto de não retorno no coração dele. Acontece que manter alguém por perto sem querer estar junto é uma das formas mais sutis de ferir. E eu fiz isso. Com consciência? Não tenho certeza.

Quando ele veio até minha cidade, eu me escondi atrás da rotina, da pressa, das desculpas. Não propus um encontro, nem disse que não queria. Fui morno, distante, o oposto do que ele foi comigo em Salvador. E, às vezes, ser morno machuca mais do que ser cruel. Vi a foto dele sumir da minha lista de contatos e soube, ali, que tinha perdido algo raro. Alguém raro. Mas eu também sabia: ele fez bem em ir. Eu sempre soube: eu não queria ele para além de um encontro. Falei em ser amigo, de estarmos próximos, mas não consegui ter interesse o bastante sequer para isso. Tudo era um esforço. Não por ele, mas por mim. Pela minha mania de me fechar com tudo e com todos que querem um pouquinho mais de mim.

Je revois les photos, et je souris. C'était beau, c'était réel. Eu fui feliz ali. Fui feliz beijando aquela boca e sentindo aquele abraço apertado, explorando cada pedaço do corpo e, sem perceber, da alma dele. Mas ser feliz não é sempre o bastante para se comprometer com o depois. E eu nunca aprendi a viver o depois.

Talvez ele pense que foi só mais um. Que eu não me importei. Que o deixei sozinho por descaso. Pode ser que sim... Mas, se ele soubesse o quanto eu temi estragar tudo só por ficar... talvez entendesse. Ou não. Não importa mais.

O que importa é que aquele dia foi real. Que, por um momento, eu quis. Mesmo que não soubesse como querer de verdade.

E, mesmo que eu tenha ido embora, uma parte minha ainda está naquela doceria, com a língua tingida de vermelho, ouvindo ele rir. E acreditando, por um instante, que a gente podia ser mais do que quase.

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Esse é o outro lado. O outro lado do beijo, do quase-amor e do depois. Não para apagar nada do que foi sentido, mas para entender que, às vezes, até quem vai embora também carrega cicatrizes. 


   

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