Mar negro - Parte VI
Sinopse: Mar Negro é uma imersão em experiências multidimensionais, narrada de forma envolvente e alternada entre a primeira e a terceira pessoa. O protagonista é subitamente capturado pelo desconhecido e levado a atravessar os limites da realidade, explorando outras dimensões do universo. À medida que viaja entre esses mundos, sua compreensão humana de vida, morte e existência é desafiada e fragmentada, tornando cada vez mais difícil acessar os segredos ocultos no abismo do Mar Negro. Em cada nova jornada, ele descobre fragmentos de uma verdade maior e se depara com formas de existência que transcendem o corpo e a mente. No coração desse cosmo infinito, ele busca não apenas compreender, mas também se fundir com o mistério primordial — uma verdade cósmica que altera para sempre a noção de ser.
Gênero: ficção científica metafísica, ficção científica surrealista
| foto original: pixabay |
Leia também:
Parte I
Parte II
Parte III
Parte IV
Parte V
ATENÇÃO: Este conto deu origem a um romance de ficção científica lançado em 2024, que explora o universo místico e os mistérios das experiências multimensionais. O livro Mar Negro apresenta uma história única, independente do conto, em um cenário próprio. Descubra todos os detalhes sobre o livro aqui.
VI
Um mundo preto e branco ou, melhor dizendo, cinzento e de poucas cores. O aspecto gélido do lugar tornava distantes e impossíveis de se manifestarem aqui aquelas cores conhecidas de outros lugares. Era um frio intenso, sabia que era frio pelo entorno, mas era suportável.
O oceano à minha frente movia-se com uma precisão hipnótica, como se estivesse vivo, mas ele não tinha cor. Não era o azul familiar que eu conhecia; era incolor e gelado, como se o próprio tempo o tornasse imóvel em sua fluidez. Mesmo assim, havia algo relaxante em fincar os pés na areia macia e sentir a sincronia dos movimentos ao meu redor. A areia era fofa o bastante para parecer pequenos pontos de borracha, macios e amenos.
Agora devia ser mais ou menos umas 15h de quantas em um dia aqui? A estrela vermelha e brilhante no céu era parecida com o sol terrestre. Ele coloria o céu meio rosa-cinzento de nuvens brancas e espaças. Aqui é um lugar verdadeiramente frio, presumi. Mas como pode ser tão frio e eu não sentir nada? Existe vida ou eu sou a vida? O único som aqui é o do movimento da maré. Que tipo de vida parece existir aqui? Sentado na areia macia e emborrachada nada desse clima hostil parecia me abalar, sentia até algo quente em mim. Provavelmente o sopro vital. Teria meu eu se adaptado a essa realidade tão distante da minha?
Algo aqui é ainda mais instigante: a noção do tempo. O tempo aqui parecia outro. Mais lento, mais complexificado, enramado entre si e eu sentia que cada segundo aqui poderia facilmente ser como uma hora na Terra. Não me pergunte como percebi isso, porque não sei explicar ao certo nem mesmo o tempo regular. Era lento, relaxante e me permitia viajar em pensamentos infinitos, tudo no mesmo instante.
Os raios solares penetravam em mim, aquecendo-me de dentro para fora. Uma sensação de paz tomou conta do meu corpo. Tudo ao meu redor parece apenas uma longa e intensa vibração. Meus olhos começaram a pesar, e a suavidade da areia me envolvia. Lentamente, me deitei, entregando-me ao sono que vinha suave e irresistível. Quando fechei os olhos, o mundo de onde vim começou a se desenhar em minha mente, nítido e familiar, quase possível de ser alcançado com as minhas mãos.
Sonhei com a vida que vivia na Terra. O meu trabalho, família, amigos, tudo voltara a ser conhecido e, embora estivesse distante, parecia que a distância se encurtava. Quando eu era criança e ficava um tempo fora, na casa dos meus tios ou amigos, e sentia saudades de casa, sonhava com ela. Tudo nesse sonho parecia fácil de ser acessado. Da casa da minha tia piscava e estava no meu quarto, como se uma parede fina e facilmente atravessável conectasse os meus diferentes mundos. Pegar um ônibus para chegar em casa não se fazia necessário, bastava atravessar por uma camada fina, entre as mil e tantas enfileiradas em uma espiral e pronto.
O tempo não era apenas mais lento, era como se o próprio ar carregasse uma sensação de eternidade. Cada segundo durava o suficiente para que eu pudesse me perder em minha própria solidão. Parecia que, na realidade, o tempo estivesse enroscado em si mesmo de alguma maneira e não apenas ele, mas eu mesmo.
Nesse devaneio, imaginei que a realidade talvez não seja como a percebemos. Somos apenas vibração. Tudo ao nosso redor é vibração: energia e impulsos elétricos. A realidade seria então composta de camadas sobrepostas em espirais, onde tudo acontece ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Mas esse lugar não é físico, pois a energia se transforma continuamente antes de se tornar matéria. Nesse universo, a energia não precisa de matéria — ela pode simular a própria matéria apenas por meio de impulsos elétricos.
No tempo enfileirado vi versões minhas e outras que poderiam ser meu eu existindo ao mesmo tempo. Não existe linha do tempo, não existe começo, fim e nem meio. É um grande fio espiral interligado e cada uma de suas pontas interferem nas outras. Será que eu poderia usar essa brecha para voltar para casa? Se tudo é uma vibração, poderia me sintonizar e voltar para aquela realidade em que estava acostumado? Mas aqui, nesse mundo cinzento existe a paz do tamanho da minha alma e me faz sentir que não faz diferença alguma voltar, porque se estou aqui, também estou lá, coexistindo e co-criando comigo mesmo, inconscientemente.
Tudo vibra. Vibra sim.
Vibrações não se findam ou deixam de existir. Acho que agora tenho capacidade para começar a entender o que aqueles seres querem dizer todas às vezes que repetem que tudo existe e não existe ao mesmo tempo. Que tudo é individual e coletivo. Saber disso me traz paz. Justamente porque toda a noção de vida humana se desmancha e se converte apenas em mais um capítulo da existência.
— “Para que a pressa?” é a primeira coisa que se pergunta quando descobre o tempo aqui, né? — Perguntou-me um dos seres desse mundo cinzento ao me acordar do sono profundo.
— Como você sabe o que estava sonhando agora? Como isso é possível?
— Não existe segredo quando você divide com a gente as suas angústias e conclusões. Tome um pouco desse líquido. Vai te ajudar a se recuperar um pouco desse banho de luz vermelha que absorveu enquanto estava deitado.
Bebo o líquido que não tem sabor de nada conhecido, mas que refresca meu corpo inteiro. Pareço melhor agora. Agradeço.
— Então... te perguntei sobre o sentimento de não existir razão para ter pressa quando se descobre que a espiral vai e vem infinitamente, não importa o que façamos, certo?
— Sim, me apequena. A vida inteira na Terra me afundava em preocupações. O emprego, os estudos, o dinheiro, os relacionamentos, a família... Tudo era sempre acelerado e temia o que não conhecia, tinha medo de morrer e não conseguir deixar a minha marca e legado no planeta. Que audácia minha. Uma grande besteira isso tudo.
— Uma das vantagens de perceber que tudo é vibração é que você pode se encaixar em qualquer uma que seja. Você pode ocupar diferentes lugares e realidades sem que isso indique começo meio ou fim. As pontas das espirais estão ligadas uma na outra. Não há porque sofrer com perdas inesperadas, tudo apenas existe e nada desaparece por inteiro. A espiral reúne tudo e todas as possibilidades. Num ir e vir infinito: vida, morte, começo, recomeço, passado, presente, futuro, transformação e movimento. Esse é o mar negro.
Finalmente levanto a cabeça e passo a observar quem é esse ser que me acolheu e despertou do sono relaxante. Sua pele brilhava como aquelas bonecas de plástico da Terra. Sua aparência não me lembrava totalmente a dos humanos, mas existia algo nele que me cativava como é com humanos. Éramos pequeninos no meio da faixa de areia e do mar gelado. Seu corpo era meio largo e um tanto baixo, com uma cabeça, tronco e membros inferiores e superiores, parecia ter asas em suas costas. Algo estava atrás dele escondido, mas não sei o que é. Seus olhos eram fundos, escuros e grandes e não havia nariz em seu rosto. Sua boca era um traço fino e linear. Sua cabeça brilhava uma luz azul anil onde nos humanos naturalmente seria coberto por cabelos. Dentro dessa luz anil existia outras milhares de cores e brilhos mais amenos. Uma beleza fascinante e hipnotizadora. Meu espírito se aqueceu de amor e sentimentos bons quando o vi. Teria eu a mesma aparência deste ser agora?
— Como você sabe de tudo isso? Como posso voltar para casa?
— Qualquer pessoa pode saber, não há nada de segredo nisso que estou lhe relembrando. Repito: neste mundo não há armadilhas. Nem nos outros mundos e realidades há mentiras e segredos. Você só precisa estar na vibração certa para receber as mensagens que é capaz de entender. É possível ir para onde quiser, inclusive para sua casa. Mas não se preocupe, você está lá agora também. É normal não lembrar que se está vivendo tantas outras vidas e realidades simultâneas.
A ideia parecia absurda demais, no entanto. Eu, coexistindo em múltiplas realidades ao mesmo tempo? Mas à medida que observava o ser à minha frente e a calma profunda deste mundo cinzento, algo dentro de mim começou a ceder. Talvez fosse verdade. Talvez essa sensação de estar aqui e, ao mesmo tempo, em outro lugar, não fosse só um devaneio. Era como se eu estivesse começando a entender... aos poucos, a vibração de tudo ao redor se misturava com a minha própria. Eu estava lá, aqui e em outros lugares que ainda não podia compreender completamente. De fato, tudo é vibração. Sem meios, fins, pausas.
Procuro formas de tentar viver alguma coisa de forma isolada, mas não consigo. Acho que fiquei preso nessa zona entre realidades e estou sem saber como voltar para casa.
Bebo mais um pouco do líquido que o ser especial me deu e pergunto seu nome.
— Não tenho nome, mas se quiser um posso criar agora, que tal Truythus?
— Porque esse nome?
— Não sei, me veio agora na cabeça.
Seus olhos esmaecem e se tornam ternos quando ele me responde. Percebo que essa interação é como um sorriso de acolhimento, de carinho.
— Acho que quero sair daqui. O que há aqui além daqui?
— Há tantas outras coisas para você descobrir aqui, você sabe. Sem pressa, você poderá aproveitar cada pedacinho daqui.
Enquanto Truythus me responde paro para observar a estrela vermelha que está brilhando e refletindo no mar gelado esfumaçado. São segundos tão lentos e intensos que o fato de ter encarado essa estrela me traz de volta aquela escuridão de outrora. Paro de enxergar e perco todos os sentidos. Abandono o corpo emprestado e noto que estou sozinho novamente. Agora sem medo e em paz, mas sem ter qualquer noção do que me espera a partir daqui no mundo que acredito ser real.
∞∞∞