Mar negro - Parte V

Sinopse: Mar Negro é uma imersão em experiências multidimensionais, narrada de forma envolvente e alternada entre a primeira e a terceira pessoa. O protagonista é subitamente capturado pelo desconhecido e levado a atravessar os limites da realidade, explorando outras dimensões do universo. À medida que viaja entre esses mundos, sua compreensão humana de vida, morte e existência é desafiada e fragmentada, tornando cada vez mais difícil acessar os segredos ocultos no abismo do Mar Negro. Em cada nova jornada, ele descobre fragmentos de uma verdade maior e se depara com formas de existência que transcendem o corpo e a mente. No coração desse cosmo infinito, ele busca não apenas compreender, mas também se fundir com o mistério primordial — uma verdade cósmica que altera para sempre a noção de ser.
Gênero: ficção científica metafísica, ficção científica surrealista 

| foto original: pixabay


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Parte II
Parte III
Parte IV



Toda vez que encaro o mar negro, sinto a vontade de mergulhar em sua profundidade do líquido escuro e cósmico. Observo o movimento das ondas, mas não com olhos humanos. Elas me hipnotizam, como se quisessem se comunicar comigo. O vai e vem me acalma, e eu me perco numa dança com o vazio. A paz aqui é estranha, sempre com um ar sinistro e misterioso. Ainda é difícil me acostumar com a ideia de que estou longe de casa e que pouco sei desse lugar que ocasionalmente me suga da Terra. Na realidade, sequer sei onde estou, porque depois da interação com Eles, começo a relativizar distâncias e a própria noção de espaço e tempo.

Pensando melhor, o que sei da Terra? Apenas o que os livros dizem, a ciência, as minhas vivências e experiências sensoriais básicas? Pouco, tão pouco. Não é por menos que quase sempre me via perguntando o que era esse mundo que se apresentava diante de mim e não compreendia. O que era esse mundo para além do que os meus olhos conseguiam enxergar e as minhas mãos tocar.

Enquanto me perdia em questionamentos, uma sensação incômoda começou a se formar, como se algo ou alguém me observasse à espreita, assim como quando eu estava na cabana e podiam ler meus pensamentos. Um silêncio profundo, quase absoluto, inunda todo o espaço. Antes que eu pudesse entender como cheguei até aqui, uma voz brotou meus pensamentos.

— Conheço o seu planeta melhor do que vocês imaginam. Estamos há éons observando tudo que vocês fazem e conseguimos ver beleza em tudo que são — disse uma voz dentro da minha cabeça. Me arrepiei. Senti o espírito congelar e a frieza do espaço quase foi capaz de me transformar em pedra.

— Por que você continua me trazendo aqui? — pergunto e temo descobrir que a resposta possa envolver algo que sou incapaz de compreender agora.

— Você sabe. Você sempre soube. Nós interagimos em meio a grandezas e escalas dinâmicas, mas interligadas. Você sabe tudo sobre mim, assim como eu sobre você. Talvez não lembre de tudo por causa da vida que leva agora, por causa da dimensão dos humanos que limita tudo que não é material. Mas já estivemos juntos em outras eras e planetas do cosmo. Fomos parceiros de jornadas, mas agora estamos em lugares diferentes, digamos.

— Eu estou doido ou você está me dizendo que é de outra dimensão, galáxia, sei lá o quê? — minha voz tremeu enquanto a noção absurda se formava.

— Você também sabe que sim — a resposta veio firme, sem hesitação.

Tentei processar o que aquilo significava. Meu corpo não-humano estava tenso, o medo se misturava à curiosidade, e era difícil contornar a ansiedade. Seria possível? A Terra... uma simples gota nesse mar negro, esse universo sem começo e fim? Seria possível eu ter um parceiro de jornada, do qual não lembro? Tudo se assanhava na minha mente, mas por mais que a ideia fosse absurda, ela parecia se encaixar em alguma parte escondida da minha consciência. Talvez fosse a única associação lógica que eu pudesse fazer agora, naquele momento.

— Pera aí, isso tornaria a Terra uma gota desse mar negro, desse universo sem começo e fim? Eu não sei... acho que é a única associação lógica e fácil que consigo fazer agora.

— A terra é um lugar fantástico. Não chega a ser o meu lugar preferido no que vocês entendem como universo, mas tem seus valores. Nós agora estamos em outro sistema, uma outra galáxia, para que entenda melhor. Seu planeta é inóspito para nós. Se fossemos aterrissar em seu planeta, morreríamos porque não respiramos o que vocês respiram, o oxigênio é tóxico a nós, incapaz de manter a vida que conhecemos.

Franzo a testa, desconectando-me de todas as minhas crenças sobre a vida, fascinado com as diferenças.

— Vou tentar relativizar e simplificar para que entenda enquanto humano. Digamos que nossos corpos são de naturezas diferentes. Na minha dimensão não existe nada disso que vocês têm, embora se quiséssemos poderíamos criar igual ou melhor. No entanto... há algo nos humanos que os torna cegos e presos a eles mesmos. Vocês nem sequer seriam capazes de nos compreender como seres vivos. Monitoram nossos sistemas há décadas e não localizam vida inteligente. Isso é tão estúpido. Estão procurando humanos onde não é possível existir... — Ele sorriu, e senti no seu riso que Eles nos veem como crianças no meio do cosmo.

— Não consigo entender bem o que quer dizer.

— Chega de falar, vou te mostrar.

| foto: oticacotidiana feito com IA (adicionado em 2023)

E então, ele me empurrara em direção ao mar negro e uma fumaça fria e branca cobriu tudo que conseguia enxergar. Parecia um mapa estelar — se é que existe isso — e fui sendo arrastado em milésimos de segundos terrestres para um lugar estranho. Não sei o que isso quer dizer, ou que lugar isso possa ser. O que vejo é um globo escuro gigante e ao mesmo tempo tudo inspira leveza e beleza. Há minúsculos quadros de lugares na Terra em milhares de faces e possibilidades, vejo tempos da pré-história e tempos que parecem ser os instantes finais antes do planeta sucumbir em morte. O mais chocante é que tudo isso, toda a nossa existência ali na Terra, ocupa um lugar minúsculo no meio da esfera gigante. Consigo ver porque sou maior que ela por um breve instante, o que me deixa completamente intrigado em como isso é possível. Sempre imaginei ser um grão de areia no meio do universo, agora, para enxergá-lo em sua totalidade, sou maior que ele.

— Fascinante, não? O que você vê aí, quase do tamanho de um fio de cabelo, é uma criação completa do que vocês chamam de ‘lar’, do planeta Terra. Para nós, Oxzivy. Que quer dizer ‘vida diferente da nossa’ nos nossos primeiros dialetos. Hoje não usamos mais códigos verbais como vocês usam. Agora vou lhe confessar algo: somos apaixonados pela capacidade de existir no planeta de vocês e de como são interessantes os seus semelhantes. Várias vezes estivemos lá. Antes que me pergunte como, já que disse que seu ambiente é inóspito para nós, nós criamos um meio de viver e manifestar-se como humano no sistema de vocês. Não precisamos de naves, isso é uma invenção estúpida de quem só acredita no material. Nossa viagem interestelar é por ondas de luz pura, transferimos informações mais rápido que a velocidade da luz e tomamos forma apenas no destino final. Uma cápsula nos protege do oxigênio terrestre. Seus semelhantes entendem isso como disco voador. É tão primário...

A cada revelação deles, sinto a inferioridade humana. Somos pequeninos no cosmo e sequer conseguimos superar nossas próprias diferenças entre nós mesmos, guerreando sem parar e criando sistemas excludentes de manutenção de poder. Como poderíamos transcender e desenvolver tecnologias e formas de comunicação para além da compreensão material, sendo tão pequenos? Ele continua:

— É sempre incrível, é sempre divertido visitar vocês. Os males que vocês apontam são tão bobos, pequenos perto do que vocês são capazes de criar. Vou lhe dizer algo que já sabe: você sou eu e eu sou você, somos parte de um mesmo todo, mas você está como humano e eu, bom, estou como outro ser que em algum momento entenderá melhor.

— Digamos que vocês podem ser e fazer qualquer coisa em nossa dimensão?

— Sim, para o entendimento humano, sim. É bom que entenda dessa forma, porque parte de você também cria da mesma forma que nós criamos.

| fotos originais: pixabay

— Ainda não entendo porque me traz aqui. Toda vez que retorno, é como se algo estivesse fora do meu controle. Não sou eu quem escolhe, não estou no controle e nunca estive. Vocês me arrastam até aqui...

— Não... — a voz soou mais suave agora, quase paternal. — Nós não trouxemos você. Você é quem veio até nós. Tem sido assim desde o início, desde a cabana, desde quando abriu aquele papel no cinzeiro verde. Só que você não percebeu ainda. Seus questionamentos, seu desejo de saber o que está além, trouxeram você até este ponto. Desde o começo, foi a sua vontade que nos chamou.

— Mas... é impossível, não conheço vocês! Nunca vi nada sobre vocês...

— Voltaremos a dizer: você quem nos procurou, apesar de fascinados pelo planeta de vocês e pelos humanos, nós não interferimos em nada sem vocês.

— Não consigo alcançar isso que está me dizendo. Cada vez que chego a essa dimensão me é dito algo. Há uma mistura de sensações. Ora medo, ora dor, prazer. O que é esse lugar?

— Tudo e nada. O eterno e o efêmero. À medida que você quiser se aproximar de nós, você irá relembrar de tudo, lembrará da nossa relação como parceiros e... quem sabe estaremos juntos outra vez. Mas há um preço que talvez você não esteja disposto a pagar.

— Preço? Do que está falando?

— Por enquanto não precisa se preocupar com isso, mas na hora certa terá que lidar com o que está próximo de se apresentar. Lembre-se que nós temos muitas faces e eu sou uma que pode confiar. Não perca de vista que o controle existe, mas agora ele não está mais com você da forma que foi acostumado a reconhecer.

Tudo escureceu na minha vista. Ao meu redor tudo está turvo e diferente. Estou de frente para o espelho de um quarto branco com paredes gigantes e sem fim, o espelho reflete meu corpo da terra, estou com uma mecha de cabelo branco. Quanto tempo se passou? Fecho os olhos e ao abrir o quarto branco desconhecido, se tornou o mundo conhecido de sempre, com todas as suas imperfeições e mistérios.


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