Historietas de Carnaval: Léia - Parte I
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I
– Não tenho trocado, moço. Só tenho esses R$ 20 mesmo – responde Léia ao cobrador da van que a leva para o Centro.
– Tá minha senhora, mas são 5h20 da manhã, fica difícil assim. – Resmunga o funcionário que está de pé e simultaneamente tenta se reequilibrar no carro em movimento – Olhe, a senhora vai ter que esperar até pelo menos chegarmos à Praça da Piedade. – continua apático, enquanto recolhe o dinheiro dos demais passageiros.
Léia reage ao cobrador com os ombros e não resiste a espera. Ela abre o zíper da bolsa e tira uma toalhinha de fios surrados e um terço católico de pedrinhas de plástico azul. Com a toalha, que tem as iniciais do seu nome e do marido Leonardo, ela seca os pingos de suor resultado da caminhada que fez de casa até o ponto de ônibus.
Todas as manhãs o ritual ao entrar na condução é o mesmo. Ela diz que o terço é para pedir proteção para que chegue segura ao trabalho e que proteja a casa, os três filhos e marido que, se tudo der certo, a verão novamente na hora do jantar. Enquanto reza em voz baixa, Léia observa pelo vidro embaçado e engordurado da van a estrutura da cidade mudar em alguns minutos. Das casas sem reboco e asfalto gasto e barroso às arquibancadas e camarotes próximos aos prédios luxuosos de píer particular.
– Obrigada. – Ela se apoia na porta corrediça do carro, respira fundo, ajeita os óculos e deixa o veículo. Ao mesmo tempo, o cobrador anuncia em voz alta o itinerário para que outros passageiros possam se interessar em embarcar. Em mãos, um bolo de dinheiro cujas cédulas são dobradas ao meio e formam quase um aviãozinho de papel. Mais pessoas entram e em pouco menos de dois minutos a van já está distante, Léia segue pela calçada e não observa o movimento de partida.
Mais um dia de casa em casa, reflete ao passar pelas estruturas do Carnaval. Apesar da rotina, ela não se sente infeliz. É grata pelos filhos na escola e pelo marido, ainda que conviva com problemas financeiros constantes, resultado das instabilidades dos empregos dele. Léia nunca teve medo de trabalho, ao contrário, aprendeu a se virar sozinha desde cedo quando deixou a cidade do interior para vir para capital aos 13 anos. No intervalo entre os passos ágeis, ela observa as horas no relógio de pulso. São 6h10. O primeiro serviço deve começar pontualmente às 6h30, os clientes são rígidos, embora simulem o contrário.
Ela segue pelas ruas da parte nobre de Salvador em passos cada vez mais largos. O esforço é quase inútil, devido aos seus 1,68m. A Avenida Centenário é o ponto de partida até alcançar o prédio onde prestará o serviço. As ruas paralelas dos bairros da Barra, Ondina e Campo Grande são interditadas por causa do Carnaval, o que torna a caminhada mais longa até os edifícios beira-mar próximo ao Farol. Enfim a diarista avista o prédio e entra. O destino é o 19º andar. Ela cumprimenta o porteiro Antônio, um senhor com pouco mais de 50 anos, barba por fazer e barriga murcha. Ele a recebe bem, mas tenta não demonstrar tanta proximidade e familiaridade. “Estou no trabalho, tenho que me concentrar e não resenhar à toa”, dizia diante dos moradores transeuntes.
Léia segue para o apartamento pelo elevador de serviço, ao contrário dos elevadores que os seus patrões usam, a vista deste não é panorâmica e ela não pode se deliciar com a vista para o mar e menos ainda sonhar que pode deixar o trabalho e ir para à praia. A entrada no imóvel tem de ser a mais discreta possível. A regra não dita, mas é subentendida. "Eles não gostam de ser incomodados", diziam. Por isso, sempre entra pelos fundos, direto na cozinha para a dependência dos empregados. É lá que ela deixa os seus pertences e que também tem acesso ao banheiro onde troca de roupa. Vestida uma calça legging preta, uma camiseta preta e com um lenço na cabeça, ela torna-se invisível a si mesma e para os outros. A mãe, esposa de nome e sobrenome se converte em uma mera operária da casa dos Jensens.
Os Jensens são uma típica família paulistana que se divide entre a capital baiana e paulista durante os meses do ano. Donos de construtoras, gerenciam empreendimentos em boa parte das capitais do país. Logo ao sair da dependência dos funcionários, Léia avista a cozinha cheia de pratos e parte da parede suja de suco. Visivelmente o líquido parecia estar ali há algumas horas ou quiçá dias. A polpa da fruta batida tinha se transformado em uma crosta gosmenta cujas formigas emolduravam e deixavam um rastro até onde o final da parede.
– Parece que alguém derramou isso aqui de propósito, né seu Jaime? – diz enquanto reforça o nó no lenço da cabeça.
– Foi o menino Vitu quem deixou cair ontem à noite. Mas já era bem tarde e nem dona Meire deve ter visto. – responde o motorista da família ao beber um gole de café preto quente e passar os olhos nos classificados do jornal.
– Entendo. – diz sem expressar surpresa com o ocorrido. Léia começa a esfregar com força a parede branca de azulejos. Ela deixa por alguns segundos um líquido agir para que o porcelanato enfim ganhe brilho outra vez. Ao mesmo tempo em que espera o resultado, põe água na cafeteira e começa a preparar o café da manhã. Já são quase 7h e ela precisa correr para que tudo esteja pontualmente na mesa no horário em que o chefe da família se levanta.
– Bom dia, Doutô.
– Bom dia. – responde Raul limpando uma das lentes dos óculos num lenço e desenhando um sorriso. Raul lê o caderno de notícias internacionais do jornal em um tablet e Léia ajusta a mesa com os talheres ao lado dos pires.
– O Sr. vai querer ovos hoje, Doutô?
– Sim, Leinha, por favor.
O café é servido. Em silêncio, recolhe a louça suja para lavar. A próxima etapa dos afazeres é limpar a sala, os quartos e preparar o almoço da família. As diaristas que prestam serviço para os Jensens têm uma escala rígida de atividades e horários, a dela incluía deixar tudo pronto para eles antes do início da tarde.
Léia se apressa, mas não se afoba ao executar as atividades, se mantém atenta a hora ao mesmo tempo que na qualidade dos serviços. Depois da cozinha, segue para limpeza dos quartos do apartamento e antes de alcançar a dependência de empregados outra vez, é surpreendida pela pergunta do filho de Raul, Ricardo Jensen, de 19 anos.
– Léia, você gosta do Carnaval? Tipo, de sair e ver os blocos e tal? – diz sem tirar os olhos da tela do celular.
– Deus me livre. Morro de medo. Graças a Deus ninguém lá em casa gosta. – diz de forma enfática ensaiando um tipo de orgulho por não se envolver nos festejos.
– Oxe, do que você tem medo? – retruca o jovem interessado momentaneamente com a resposta. Ele a encara por alguns instantes, mas logo retorna para a tela do telefone.
– É muito violento, sabe. Tem muita briga, como sou pequena, posso acabar sobrando. Também a festa já foi boa, no meu tempo não tinha o que tem agora, havia clima de paz – Ri de forma saudosa por um instante, para e ajeita a manga da blusa que se dobrou sozinha. Ela encara de longe a pia da cozinha e completa: – imagina sair hoje em dia e não poder levar nada para não ser roubada, Deus me livre! O transporte também é muito ruim, táxi é caro, ônibus lotado.
– Nada a ver. Depende do lugar, Léia. Deixa de coisa. Saio todo ano e nunca aconteceu nada. Eu adoro Carnaval!
– Você é maluco e deve ter sorte, só por isso. Aposto que você fica nas cordas ou nos camarotes. - Léia se espanta com a própria resposta que foi capaz de dar.
O jovem responde com um sorriso de canto e um balançar de cabeça para indicar o desdém da observação lançada pela diarista.
Pouco depois das 12h, Léia serve o almoço aos Jensens.
Parte II - Final
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