Mar negro - Parte II


Sinopse: Mar Negro é uma imersão em experiências multidimensionais, narrada de forma envolvente e alternada entre a primeira e a terceira pessoa. O protagonista é subitamente capturado pelo desconhecido e levado a atravessar os limites da realidade, explorando outras dimensões do universo. À medida que viaja entre esses mundos, sua compreensão humana de vida, morte e existência é desafiada e fragmentada, tornando cada vez mais difícil acessar os segredos ocultos no abismo do Mar Negro. Em cada nova jornada, ele descobre fragmentos de uma verdade maior e se depara com formas de existência que transcendem o corpo e a mente. No coração desse cosmo infinito, ele busca não apenas compreender, mas também se fundir com o mistério primordial — uma verdade cósmica que altera para sempre a noção de ser.
Gênero: ficção científica metafísica, ficção científica surrealista 

LEIA TAMBÉM:
 Parte I: Mar negro 


II
  
Por mais que eu – ser terrestre – existisse fisicamente, nenhum ser naquele lugar era como eu. Eles sabiam exatamente que eu estava esperando alguém ou buscando qualquer sentido lógico para a minha presença ali. Talvez porque nós, seres humanos, somos previsíveis, reféns do medo da solidão. É fácil imaginar que estaríamos esperando alguma coisa, alguma resposta. Eu não fugia à regra. Estaria também deixando transbordar o meu estado de contradição ora tranquilo, ora assombrado?

Meus pensamentos pareciam públicos, rarefeitos. Não podia guardar qualquer segredo e não precisava me comunicar com palavras. A comunicação parecia telepática. Os meus sentimentos e pensamentos eram decifrados por quem me observava de longe. Sentia a presença deles, mesmo sem ver um corpo material. Estamos trocando algo que vem de dentro. Sinto mais um formigamento, deve ser arrepio, algo que me deixa desconfortável.

Desejei companhia. Podia ser de alguém, ou algo que pudesse ver com os meus próprios olhos. Qualquer rosto poderia me salvar do silêncio e da solidão. De repente, um cinzeiro esverdeado surgiu no balcão de caixotes, e nele havia um pedaço de papel branco com três dobras. Abri. Ele era parte de uma folha com pautas azuis gastas de tanto que se havia escrito e apagado. Quase em branco, não fosse pelas marcas do tempo e uso. Li o que estava escrito. Mas o que decodifiquei não estava no idioma que uso para me comunicar com os meus semelhantes na Terra. Eram códigos estranhos a mim, mas naquele instante pareciam lógicos e entendíveis. Números, símbolos e caracteres nunca vistos.

Esquivei para os lados, com interrogações impostas pelo recado direto e curto. Uma paulada. Era seco, sem possibilidade para dualidades. Quase matemático na lógica do 0-1. O silêncio insistia e o casebre permanecia imerso e flutuante nas bordas do mar de escuridão sem ondas e sons.

Qualquer rosto poderia me 
salvar do silêncio e solidão 
Mar Negro

Num dado momento, surge colado ao meu rosto a representação do que estava escrito na folha rasgada. No entanto, como me assustei, empurrei o que estava diante de mim ao mar negro de plasma. Não ouvi um único grito ou sinal de dor na queda, ele apenas foi engolido pelo escuro enquanto me observava sem piscar e sem dizer qualquer palavra. Aquilo me assustou, talvez preferisse ter escutado um grito, um som de partida, algo que indicasse que aquilo que estava diante de mim tinha vida e era meu semelhante, que era algo meu. Estava morto, ou eu o matei ao lançá-lo no mar negro?

O papel, antes aberto, se fechou no cinzeiro sem que eu precisasse fazer isso. As luzes anis agora formavam uma borda cintilante no casebre. Havia feixes de luz por todos os lados. Abri a nova mensagem e vi o que me perseguia sempre. Senti um aperto na alma, comovido com o que pressentia estar por vir.

Uma luz transbordou dos meus olhos e tive visões de uma Terra tão diferente e distante daquela em que vivia. Meu cotidiano banal já não existia, menos ainda as formas de vida dele. Tudo era novo, misterioso. Eu via tudo e me assustava tamanha precisão e beleza de funcionamento. Como uma engrenagem em meio a uma máquina orgânica, tudo era perfeito e funcionava harmoniosamente. Me deixo levar. A paz era onipresente e dali em diante associei o que dizia o papel. 

Achava que estava em
alguma face do tempo 
Mar Negro

Acho que estava em alguma face do tempo. Agora, já não era dia, tampouco noite. As cores do céu eram intermediárias e indicavam parte do dia e parte da noite. Me encantei. A luz, aos poucos, ia se apagando, e a escuridão engolia tudo, inclusive invadindo o casebre. Eu já não era eu: era parte da escuridão e nela não sabia distinguir o real, o presente, passado, futuro ou a vida da morte. Havia movimento em tudo.

De uma respiração profunda, agora estranhamente necessária, notei que meu corpo fora lançado em queda livre, numa velocidade agressiva, talvez a da luz. Como poderia saber? Tento traduzir para meus semelhantes humanos com base nas invenções e convenções também humanas. A parte de mim que estivera no casebre colou-se novamente àquele corpo estirado na cadeira centenária. Eu estava de volta à vida de sempre. Que agonia! Meu coração pulsava tão forte, meu corpo era uma brasa e meus sentimentos estavam explosivos. Levantei e minhas pernas tremiam, quase não podiam sustentar a minha nova versão tocada pelo desconhecido. Voltei a sentar-me. Que diabos aconteceu? Me perguntava.

Do mar escuro a aquele arranjo de luz eterna que parecia tão infinito e confortável, eu queria ir além. Cobiçava entender mais daquela face de tempo ou espaço, seria àquele um novo mundo? Se sim, o que preciso fazer para voltar? Esse espaço que devo ter visitado, era tão equilibrado, confortável, infinito e pleno. Havia algo que sempre buscávamos na Terra e falhávamos, havia amor infinito para qualquer criatura. Até mesmo as perdas do que se lançara ao abismo eram sempre substituídas por ganhos ainda mais singulares, melhores. A renovação e a gratidão faziam parte de um fluxo infinito que despejava nas almas de quem existisse.

Meus olhos estão dilatados, tudo era turvo e meu corpo ainda estava quente. Não sei mensurar quanto tempo passei naquele lugar. No espelho, notei que o meu corpo devia ter alguns quilos a menos. Não sei se era o peso físico ou da alma que voltou mais leve, embora perturbada.

No meu lado transcendente, havia a certeza de que o que quer que exista nas faces ocultas do tempo de uma vida banal, precisa ser revelada e experimentada mais vezes. Quero mais e quero entender como tudo aconteceu. Perseguia inutilmente a sensação diferente de tempo de quando estava no envolto do mar negro. O que virá a partir de agora?
 

LEIA TAMBÉM: Parte III: Mar negro

 

Não pare agora... Veja os textos mais lidos!

EM ALTA...