Mar negro - Parte I
Sinopse: Mar Negro é uma imersão em experiências multidimensionais, narrada de forma envolvente e alternada entre a primeira e a terceira pessoa. O protagonista é subitamente capturado pelo desconhecido e levado a atravessar os limites da realidade, explorando outras dimensões do universo. À medida que viaja entre esses mundos, sua compreensão humana de vida, morte e existência é desafiada e fragmentada, tornando cada vez mais difícil acessar os segredos ocultos no abismo do Mar Negro. Em cada nova jornada, ele descobre fragmentos de uma verdade maior e se depara com formas de existência que transcendem o corpo e a mente. No coração desse cosmo infinito, ele busca não apenas compreender, mas também se fundir com o mistério primordial — uma verdade cósmica que altera para sempre a noção de ser.
Gênero: ficção científica metafísica, ficção científica surrealista
Embora a confusão me cerque neste momento, algo em mim se sente excitado em relembrar e remontar aquela experiência, porque não se tratou de uma qualquer. Foi A experiência. Perturbadora o suficiente para me fazer duvidar da minha lucidez, ela me deixou flashes intrigantes que surgem quando fecho os olhos, sequela do que ela foi capaz de perturbar em mim. Eles são fortes o suficiente para manter vivas as sensações que percorreram meu corpo. É estranho que, ao mesmo tempo em que lembro de pouquíssimo, sou assombrado por detalhes minuciosos. Sei que tudo existiu e talvez nutra a esperança de que aconteça outra vez.
Era uma quinta-feira qualquer e eu havia lançado meu corpo em uma cadeira que devia ter mais tempo do que eu no universo. O toque da madeira era suave e o acento levemente acolchoado. Estava ali sem propósito, apenas descansava de mais um dia tipicamente banal no escritório.
Diante daquela cadeira, vislumbrava se um dia teria o mesmo tempo de existência dela, porque às vezes para continuar a existir é preciso ser como um móvel: um mero adorno e inanimado, sem demonstrar meus sentimentos ou posições sobre temas inquietantes da vida. A existência em sociedade, a vida animal, baseia-se em riscos e eu corria tantos que já temia existir. A bem da verdade é que talvez nunca chegue a viver um terço do tempo de existência dessa cadeira. Como predadora nata, a humanidade teria o poder de me destruir com facilidade. Em segundos, a minha história seria pulverizada e eu seria facilmente esquecido. No escritório me substituiriam no dia seguinte, nas lembranças das pessoas que eu amo, permaneceria por algum tempo, mas muito pouco. Porque o mundo dos vivos é imediatista e se apega pouco as lembranças ou ao passado. Quem se importa? Eu deveria? Mas por que, se a minha é tão comum como as demais? Talvez me faltem amores para perceber que cada história deve ter o seu valor e a minha de certo deveria ter também.
Meus pés estavam apoiados um em cima do outro, empilhados para se esconder do chão frio. Estirado na cadeira, olhava para o teto da casa que me é familiar. Meu lar, onde me refugiava todos os dias do mundo selvagem, do mundo de gente grande em que preciso sorrir e acenar para não ser esmagado pela ambição e ódio dos meus semelhantes. Em casa, estou seguro de todos, exceto de mim, da minha mente inquieta.
Por beber de um tédio contínuo, o teto branco e com detalhes da arquitetura de outro tempo parece novo e explorável. Meus olhos corriam de um lado para o outro, de cima para baixo. Eles acompanhavam a dança das aranhas nas teias longas e quase invisíveis. Parecia interessante olhar para cima e ocupar-me um pouco com esse tempo vazio que insistia em me abraçar. Respiro. Agora estou meio tonto, pareço inalar algo que altera meus sentidos. Meu corpo formiga por inteiro. Estou aqui, mas parece que estou partindo.
Não sei bem como e por que tudo que se sucedeu aconteceu. Só lembro que aos poucos o meu corpo parecia cada vez mais pesado e se distanciando do que imagino ser a energia vital que habita em mim. Talvez esteja me referindo ao que chamamos de espírito ou alma. Tanto faz. Só sei que aquilo que saia da minha carne era o lado transcendente, o meu lado puro e cru. Ele se descolava sem sinais de dores. Ouvia aquele som, antes desconhecido, do intangível afastando-se do tangível. Definitivamente algo estava mudando de lugar.
Descolei.
Uma parte minha permanecia no móvel mais velho do que eu, neste planeta já conhecido. Outra, ascendia violentamente aos ares, num mergulho explosivo quase impossível de fisgar os detalhes até chegar ao topo.
Subia. Subia. Subia. Leve e veloz. Passava por bolhas transparentes sem cheiro. Elas se assemelhavam a algum tipo de plasma. As bolhas eram como um sopro vital, havia energia em camadas finas. Algo brilhava. Elas trocavam energia e experiências comigo. Elas eram quase tão secas e grudentas, quanto as teias de aranha de há pouco. Se agarraram a mim, ao que acredito ser eu no meio da escuridão do cosmos. Eu, agora sem a carne que me tornava visível aos outros seres, subia e furava essas bolhas, uma a uma num estouro silencioso. De repente, tal qual os imãs atraem o aço, colei-me em um outro eu. Ganhei uma cápsula, uma casca para interagir nesse lugar desconhecido.
I
Era uma quinta-feira qualquer e eu havia lançado meu corpo em uma cadeira que devia ter mais tempo do que eu no universo. O toque da madeira era suave e o acento levemente acolchoado. Estava ali sem propósito, apenas descansava de mais um dia tipicamente banal no escritório.
Diante daquela cadeira, vislumbrava se um dia teria o mesmo tempo de existência dela, porque às vezes para continuar a existir é preciso ser como um móvel: um mero adorno e inanimado, sem demonstrar meus sentimentos ou posições sobre temas inquietantes da vida. A existência em sociedade, a vida animal, baseia-se em riscos e eu corria tantos que já temia existir. A bem da verdade é que talvez nunca chegue a viver um terço do tempo de existência dessa cadeira. Como predadora nata, a humanidade teria o poder de me destruir com facilidade. Em segundos, a minha história seria pulverizada e eu seria facilmente esquecido. No escritório me substituiriam no dia seguinte, nas lembranças das pessoas que eu amo, permaneceria por algum tempo, mas muito pouco. Porque o mundo dos vivos é imediatista e se apega pouco as lembranças ou ao passado. Quem se importa? Eu deveria? Mas por que, se a minha é tão comum como as demais? Talvez me faltem amores para perceber que cada história deve ter o seu valor e a minha de certo deveria ter também.
A vida animal é baseada em riscos
e eu corria tantos que já temia existir
Mar Negro
Por beber de um tédio contínuo, o teto branco e com detalhes da arquitetura de outro tempo parece novo e explorável. Meus olhos corriam de um lado para o outro, de cima para baixo. Eles acompanhavam a dança das aranhas nas teias longas e quase invisíveis. Parecia interessante olhar para cima e ocupar-me um pouco com esse tempo vazio que insistia em me abraçar. Respiro. Agora estou meio tonto, pareço inalar algo que altera meus sentidos. Meu corpo formiga por inteiro. Estou aqui, mas parece que estou partindo.
Não sei bem como e por que tudo que se sucedeu aconteceu. Só lembro que aos poucos o meu corpo parecia cada vez mais pesado e se distanciando do que imagino ser a energia vital que habita em mim. Talvez esteja me referindo ao que chamamos de espírito ou alma. Tanto faz. Só sei que aquilo que saia da minha carne era o lado transcendente, o meu lado puro e cru. Ele se descolava sem sinais de dores. Ouvia aquele som, antes desconhecido, do intangível afastando-se do tangível. Definitivamente algo estava mudando de lugar.
Descolei.
Uma parte minha permanecia no móvel mais velho do que eu, neste planeta já conhecido. Outra, ascendia violentamente aos ares, num mergulho explosivo quase impossível de fisgar os detalhes até chegar ao topo.
Subia. Subia. Subia. Leve e veloz. Passava por bolhas transparentes sem cheiro. Elas se assemelhavam a algum tipo de plasma. As bolhas eram como um sopro vital, havia energia em camadas finas. Algo brilhava. Elas trocavam energia e experiências comigo. Elas eram quase tão secas e grudentas, quanto as teias de aranha de há pouco. Se agarraram a mim, ao que acredito ser eu no meio da escuridão do cosmos. Eu, agora sem a carne que me tornava visível aos outros seres, subia e furava essas bolhas, uma a uma num estouro silencioso. De repente, tal qual os imãs atraem o aço, colei-me em um outro eu. Ganhei uma cápsula, uma casca para interagir nesse lugar desconhecido.
Eu definitivamente estava
em alguma parte desconhecida do universo
Mar Negro
Notei que estava em um casebre e que não precisava mais respirar. Meu coração não batia. O corpo humano não é vital aqui. Havia confusão em mim, e eu definitivamente estava em alguma parte do universo que nunca imaginei existir. Tenho certeza de que aquilo não fazia parte de qualquer lugar do planeta Terra. Era tudo diferente do que já tinha visto, tanto que não me sinto em condições de encontrar palavras perfeitas capazes de expressar o que estava posto e, menos ainda, de dar a descrição idêntica delas. Tudo que segue são palavras escolhidas com esforço de interpretar para os demais humanos o que aconteceu.
Enquanto observava o casebre ao meu redor, o mar negro e profundo me chamava com sua beleza aterradora. O casebre não tinha paredes propriamente ditas e nem um chão sólido. Ele parecia flutuar num mar preto escuríssimo e espesso. Não havia nada ao redor. Sem sol, lua ou estrelas. Havia pontos de luzes anis, azuis e verdes esmeraldas. As verdes ora piscavam em intervalos longos, ora eram fixas e penetrantes. Cheguei na ponta do precipício e o mar parecia tão profundo, belo e assustador que não espantaria deixar-me envolver e lançar o meu corpo — eu tenho um aqui? — a ele. Talvez quisesse aquela profundidade para meu ser, queria me perder em meio ao líquido escuro. Queria existir de forma infinita e cósmica.
Era escuro, profundo, mas conseguia ver além dos tons pretos. Os detalhes se assemelhava a um berçário de vida marinha cujos seres pareciam existir a anos luz de distância e se movimentavam levemente. Talvez flutuassem, não sei bem. A única coisa que consegui perceber é que este mar era mais profundo do que qualquer abismo que existe na Terra, ele tinha um continuum de vidas, luzes e energias completamente independentes. Nenhuma delas era conhecida por mim.
Desviei a atenção do precipício para o casebre em que estava. Havia um balcão de caixotes improvisados, provavelmente já usados. Mais de perto, notei que a luz agora deixou de ser anil e passou a ter tons alaranjados e amarronzados. Apoiei-me no balcão à espera de que alguém pudesse me atender. Eu devia esperar? Por quê?
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