Sobre os defeitos que acreditamos ter

e àqueles que acreditamos que o outro tem

Imagine que foi a uma loja. Olhou as prateleiras e procurou um produto.  Ouviu as suas características e funções inúmeras vezes, através das conversas com os vendedores. No final, você compara mentalmente as características apresentadas com as suas expectativas e, então, compra e sai da loja.

Ao chegar em casa, uma surpresa: o produto não funcionava da forma que imaginou e, mais ainda, aparentemente estava com defeito. A sua reação é de retornar ao estabelecimento imediatamente e conversar com a gerência para realizar a troca. Por ser um produto novo, a ideia de consertá-lo parece abusiva. É do novo que precisa e investiu, não em algo com reparos.

Nesta situação hipotética, se o tal defeito for de fato um, a troca será feita. Caso contrário, não. Para o consumidor, será necessário aprender a lidar com o produto que tem o que se acredita ser defeito.


E nas relações humanas?

No quê a concepção de defeito aplicado a um produto se aproxima, quando aplicado às pessoas? A comparação mental com as expectativas e o desejo de troca e pelo novo também é aplicada quando investimos em alguém e nos decepcionamos? Será que nesses processos atuais não estamos transferindo comportamentos com o que é material com as relações imateriais?

O quê é que caracteriza o defeito real de alguém? Existe alguém que realmente os possui? Paro para me perguntar todas às vezes em que me deparo com situações e acusações sobre a existência deles que, muitas vezes, se confundem com as características e diferenças que particularizam cada um de nós.

Pelo conceito nos dicionários, entende-se por defeito: “1. Imperfeição física ou moral. 2 Deformidade; vício; balda. e 3 Inconveniente; estorvo.”, diante de tais significados me pergunto se, no processo de relação com o outro, características e diferenças não são julgadas como defeitos injustamente.

Não gosto da concepção de defeito do produto que é aplicado às pessoas e relações. O defeito, em um mundo de relações cada vez mais líquidas, conota silenciosamente que alguém é também um produto, portanto, possível de ser descartado, por não seguir um padrão e, consequentemente, por não corresponder expectativas.

Ainda na analogia do que se transfere da relação que se tem com produtos, para o que se tem com pessoas, um defeito pode sequer existir. Pode ser uma característica que passou despercebida e que, na realidade, é uma função desconhecida que pode ser útil quando conhecida e explorada.

Acreditar que se têm defeitos também é outra questão que pode gerar limitações e culpa. Tudo isso é institucionalizado, através dos nossos processos educativos e culturais. Aprendemos que ao seguir outros comportamentos, ao ser diferente ou não corresponder ao outro, muitas vezes a um padrão, se têm defeitos. Tudo isso é aplicado não só aos relacionamentos, mas a própria noção das particularidades físicas de cada um.

Como seria se ao invés do conceito de defeito, tivéssemos o de características particulares ou da diversidade. Talvez tivéssemos menos pessoas julgando e brigando com outras por defeitos que nunca existiram. Não quero dizer com isso que somos perfeitos em tudo que somos e temos, e que não devemos procurar ser melhores, longe disso. Quero dizer que, no processo de procurar problemas nas relações, é preciso se atentar que o outro é diferente e que as nossas relações de consumo podem influenciar na forma que vemos e no que esperamos no outro.

Para mim, não existem defeitos, mas diferenças que podem ser boas ou ruins para alguém. No entanto, o que pode ser ruim para alguém não significa que terá de ser para outro. Por isso, acredito que viver as relações que buscam mudar o outro e oprimir, por causa das características incompatíveis, é abrir caminho para relações insalubres e opressoras.

E no fim...

Às vezes a grande surpresa de quem adquiriu algo novo em uma loja é não retornar a ela, mas observar os seus detalhes desse novo e entender que o quê se acredita ser defeito é, na realidade, uma parte inerente do produto.

Se assim permanecermos na analogia entre produtos-pessoas -- que não gosto, mas que existe -- o defeito que se acredita existir em alguém é uma particularidade que significa uma oportunidade de ter experiências com o outro.

A troca, nas relações humanas, não deve se fundamentar pelo descarte, mas pelo vai e vem das relações, da noção de que o outro é um ser diferente e que nem tudo é defeito. Assim como entender que o outro não pode lhe atribuir culpas e impor mudanças por algo que é uma característica sua que não pode ser mudada.   



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