Ninguém (Parte V)
V
Me pego na cadeira do
escritório refletindo sobre tudo. O que terá acontecido naquela noite do
acidente e nesses quatorze meses? O fim perturba, quer virar presente outra
vez. Mas adiantaria viver a sombra de algo que só serve de adorno a um vazio
seu? Seria estúpido de minha parte viver de emulações sentimentais suas. E
ainda que eu tenha dado incontáveis segundas chances, você optou por destruir
esse laço. Não só perdi uma vida nesses 14 meses em coma, como perdi a minha
autoestima e confiança.
Ontem nos vimos
outra vez na fila de uma lotérica no shopping, e você foi incapaz de me perguntar
se tudo estava bem. Talvez agora você entenda, porque tenho evitado abraços tão
falsos e cumprimentos forçados. Adianta emular carinho e atenção? Desisti de
impor espontaneidade. Você deixa claro sempre que só precisa das pessoas,
enquanto as suas necessidades afetivas estão em êxtase, porque, em seguida, as
descarta e friamente segue feliz com a consciência de que fez o certo. Você faz
o certo?
Contudo, as coisas
mudam e não vai haver um castigo maior do que você conviver com o quê você é e
com a consciência de dor provocada que cedo ou tarde te chegará. Talvez agora
entenda a gravidade das coisas que faz sem pensar, com as frases soltas ditas as
pessoas que te amam. Mas como dizem por aí, nem sempre o amor dado é o amor que
se merece receber. Como eu poderia perceber que era este o meu caso?
O complexo de
sentimentos que sou e tenho é o verdadeiro motivo de tudo. Quatorze meses refém
de um acidente, quem consegue conviver com isso? Até hoje não sei se devo
investigar o que aconteceu com a minha vida anterior ao acidente. Deixei aquela
vida inteira para trás. Retornei a minha cidade, mas não a mesma vida. Eles
acreditavam que eu tinha morrido ou estava preso a uma dimensão temporal, que
nunca mais iriam me ver outra vez. Que surpresa rever alguém que achou que
tinha morrido. Elas parecem felizes ao notarem que sobrevivi. Contudo, mesmo
sem saber de muita coisa, existe algo que ainda não consigo conviver.
O som da palavra “ninguém”
que saiu da boca da enfermeira me faz pensar em como é doloroso carregar o
fardo de não ter ninguém, em como é doloroso se manter em coma e preso às
situações, enquanto todo o mundo se transforma. Amar alguém que te ver como
ninguém é viver em coma? Amar ninguém e ver as transformações do mundo sem
emoções é viver em coma? O que levar adiante quando esse som ainda me perturba,
machuca e convivo com um fantasma que pode nem ser real? Eu sou o ninguém que
quase morreu porque amou (um) ninguém. ∞