Ninguém (Parte IV)
Saio do hospital e
constato: terminamos. Mas realmente começamos algo algum dia? Nem nos nossos
contínuos porres de infinidade não imaginávamos e nem sonhávamos com este fim.
Contudo, ele existe. Nós terminamos. Quem dera fosse como nos filmes em que o
“fim” aparece escrito em letras garrafais, num corte rápido, sagaz e
conclusivo. Os créditos sobem e em seguida tudo se esclarece outra vez. A vida
flui com o término dos filmes e nada é tão perturbador. No entanto, não. O
nosso fim não é dessa forma e nem poderia ser. Sofri um acidente e ele era a
prova de que nem se eu estivesse para morrer, você voltaria a me procurar. Como
conviver com essa infeliz conclusão?
Me pego, de repente,
protagonizando a clássica cena em que revejo as fotografias de dias felizes em
que estávamos bêbados de infinidade. Recordo também de quando eu estava garupa
de sua bicicleta, rindo, e corríamos numa velocidade insana atrás dos nossos
desejos realizados. A química entre nós era notada por desconhecidos, que
sentiam empatia por nós e por nosso envolvimento. A proximidade e
companheirismo vilão virou prisão, virou essa dor de não ter você.
O fim chegou e como
ele não é automático e o nosso relacionamento me deixou consequências, me pego
usando o que vivemos como base para comparar situações passadas e futuras. Me
pego com medo de me relacionar outra vez e passar por todo sofrimento que
passei. Você era o ponto de equilíbrio que eu recorria sempre que tudo estava
confuso ou temia o futuro. Tenho dúvidas se realmente algo existiu ou se criei
tudo na minha cabeça.
Num lapso irracional,
ou talvez espontâneo, me pego no telefone discando o seu número novamente, que já
nem na agenda estava gravado. Queria contar-lhe o que aconteceu nesses últimos
meses. Você me escutaria? Mas antes que eu aperte o botão para chamar, caio em
mim e percebo que já não há espaço para mim, nem para uma amizade.
Contradição. O fim
com essas três letras é contradição. É insano eu não desejar compartilhar minha
vida pessoal com você e partilhá-la, no primeiro momento mais íntimo e de
fragilidade. O que passa entre nós ainda? Mais uma vez estou refém do
sentimento do fantasma do fim? As suas fotografias, as comparações mentais, os
convites a eventos banais e os formais – que você faz questão de sempre negar –
como livrar-se desse costume e não sentir falta de sua companhia? Parece que você
leva a história num outro tom, parece fácil, para você, se relacionar com
outras pessoas tão rápido e mais fácil ainda descartá-las, como fez comigo
nesses últimos meses, antes do meu acidente.
Recordo da vez em que
te disse "se você destruir o amor que sinto por você, você estará fazendo
uma das coisas mais estúpidas de sua vida", mas não é que você fez, ou
melhor, vem fazendo? Do que adiantou tudo que fiz por você? Do que adiantou lhe
fazer acreditar em si e fazer acreditar que era especial do jeito que é, mesmo
com defeitos? O fim me parece doloroso, porque só eu pareço sofrer. Sofro, como
em boa parte da nossa história sentimental, por dois. A sua frieza segue me
assustando, porque cada vez mais parece sofisticada. Seu cinismo também
assusta, sobretudo porque não julgo merecer conviver com todos esses seus lados
tão vis. Adianta ser unicamente bom? A diferença entre nós é que eu aprendi a
conviver com seus erros e me esforcei muito para isso. Você não. Parece coisa
de gente egoísta você não ter feito o mesmo esforço. Talvez você seja mesmo.
O que terá acontecido
nesses meses que não me procurou? Tenho medo de procurar qualquer coisa que
possa me ferir ainda mais. Me pego preso nesse assombro, em que procuro você,
porque você ainda é a minha referência sentimental e tenho saudades. Mas e
quando passar? Quando formos estranhos como antes de nos conhecer? Será que
chegará o dia em que eu não conseguirei te reconhecer? Em que a intimidade e
vínculo irão evaporar, como um susto?
Minha cabeça parece
em chamas. Olho você com atenção, porque sei que tudo que fez e tem feito é
coisa de quem tem medo e ao mesmo tempo quer um pouco de tudo. Mesmo ciente,
machuca. Sua insegurança e ansiedade em ter todos e tudo, te coloca em
situações ruins. Mas há algo nesse fim que eu tenho levado em conta: eu não
desejaria ser a sua versão atual e menos ainda a futura, que irá conviver com
este fardo.
Queria dizer tudo que
estou pensando agora para você. Entraria na sua casa e obrigaria a você ouvir
tudo que aconteceu nesses meses e tudo que estou sentindo. Sei que não faria
isso, porque teria medo do que poderia sentir ao perceber que pouco se
importaria. Como parece insensível a um amor tão espontâneo e que você mesmo
cultivou, pelas suas necessidades emocionais. Agora que encontrou outra pessoa,
me descarta assim?
Dizem que perdemos a
visão com o tempo, mas vejo de forma contrária. É justamente no futuro, com
esperanças de maturidade, que você verá o que foi capaz de fazer com um amor e
com quem só quis te amar. Não queria estar no seu lugar neste dia e nem
conviver com a dúvida do "e se eu aceitasse aquele amor?" ou "e
se eu tivesse mais atento para não ferir tanto?". Pois é, terminamos.
Terminamos o que nunca começamos? O que só existiu em minha cabeça, segundo
você, porque você um dia incentivou a acreditar em algo mais. Incentivou? Achei
irresponsável e egoísta a sua atitude, conquistar para descartar sem usar é
mero egoísmo. Parece até essa geração que compra de tudo, não usa e em seguida
descarta. Já se sentiu descartável alguma vez? E quando sentimentos estão
envolvidos? Só com a maturidade você entenderá como esses sentimentos eram e
são intensos. Confesso que estou sem amparo. Acabo de sair do hospital, como
vou recomeçar a minha vida?