Bilhete retrospectivo
Cada segundo é único.
Nada experimentado toma forma de experimento outra vez. Experiências são únicas. Não existe replay. É só a vida que segue numa sincronia assustadora. Para os
mortais, restam lembranças, interpretadas e fixadas da maneira que melhor
convém.
Num dia aparentemente
banal, entrou pela porta de casa e apoiou-se no primeiro lugar em que pudesse
se equilibrar. Perdeu-se em palavras, numa retrospectiva e escreveu num
bilhete:
Não gosto de precipitações e
expectativas desleais, mas acho que algo no mínimo diferente, ou talvez místico,
aconteceu quando cruzei olhares com você. Seu rosto estampou o susto e a
timidez de quem abriu a janela da alma, sem resistir, para um estranho vagar.
Do meu lado, observei o novo: a sua
boca, os detalhes do seu rosto aparentemente comum, mas singular. Mesmo diante
de tamanho interesse em desvendar o que via, tentava disfarçar o quão estava
atraído em explorar um território desconhecido.
Talvez uns três metros de distância
possam parecer pouco para tantas observações e sentimentos, principalmente
quando se observa o desconhecido. Talvez três minutos tenham sido pouco para
qualquer envolvimento. Mas algo aconteceu em algum dos dois lados.
Agora, só restou o medo de
expectativas desleais e resistência para esquecer esse filme que passou pela
minha cabeça, nesses milésimos longos segundo. Imaginar um relacionamento
nestes poucos segundos provocou consequências. Elas são tão desconhecidas como
você.
Dobrou o bilhete –que
nunca seria entregue ou revisto– e suspirou. Se acreditava em amor à primeira
vista? Não. Não acreditava, mas sonhava. É um contraste querer algo em que não
se acredita. Em meio a tantas dúvidas, pareceu haver um indício de certeza: se
trocarem olhares novamente, talvez crie uma história particular de amor. Pode
ter acontecido tudo, ou nada além dos seus sentimentos e esperanças. Quem lhe
garante algo? Todas as concepções se mostram frágeis, quando experimentadas por
sentimentos novos. Nada é tão justo quando se têm sentimentos em jogo.
Durante a noite, ao
deitar e por a cabeça no travesseiro, se preguntava se iria sofrer para
esquecer ou viver o imaginado. Fazia perguntas tão desgastadas como as suas
respostas. Seu desejo era de que algo fosse verdade naquilo que fez bem em tão
pouco tempo. Imaginou o seu desejo materializado levando para outras etapas e
sentimentos bons.
Mas tudo que recebia
era a dor da constatação da distância, da gélida realidade e do amor amorfo
inexistente, e talvez opressor. Cansou de tudo isso, mas não fazia diferença,
porque não havia nada a ser feito naquele instante. Qual seria a probabilidade
de um novo encontro?
O risco de inventar ou
criar sentimentos se mostra nocivo nas experimentações e constatações da
improbabilidade de fatos se repetirem. Por mais que existam rotinas, os
desconhecidos dificilmente se reencontrarão e se tornarão conhecidos. Nada é
certo, tudo pode ser explorado. Nada é justo quando se trata do amor e da
sincronia em perceber e criar as lembranças de um presente instantâneo. ∞
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