Figurinha chave
Todos. Absolutamente todos os garotos do meu
bairro falavam e cobiçavam uma tal figurinha chave. Constatei a relevância
quando completei todo o meu álbum e só me restava encontrá-la, para fazer valer
a coleção.
A ansiedade me dominou durante dias, desde a
manhã, em que voltando da escola, completei as páginas do álbum. Durante horas
imaginei formas rápidas de materializar esse desejo. No final da noite acabei
dormindo por obrigação, porque meus pais não me deixaram ficar acordado potencializando
a minha ansiedade.
Quando a luz do sol preencheu o espaço entre as
cortinas, levantei. Percebi que ainda estava cedo. Com uma pressa fora do
normal, mal tomei o meu café da manhã: deixei tudo pela metade e atravessei a
porta, para alcançar a rua. Minhas pernas curtas tentavam me dar passos rápidos
e afobados, até que enfim cheguei à praça.
De frente para a banca de revistas, fiquei
sentado e imóvel, sendo devorado pela angústia, pois precisava daquela
figurinha chave a qualquer custo.
Enquanto o dono da banca – um senhor de idade,
com cabelos brancos e ralos – dava sinais de que já iria abrir, impacientemente
aguardava a autorização de que já poderia fazer o pedido. Olhava para trás
imaginando alguém que poderia ocupar o meu lugar. O primeiro lugar. Mas ninguém ousaria, porque minha expressão devia
representar a agressividade latente.
Depois de alguns minutos, que pareceram horas,
ele se aproximou e me perguntou:
– Bom dia, em que posso ajudá-lo?
Imediatamente, e mal o cumprimentando, cuspi as
palavras de alívio:
– Bom dia, por favor, me dê cinco pacotes de
figurinhas.
O senhor gentilmente me entregou os envelopes,
empilhando cada um deles lentamente, com as suas mãos meio murchas e brancas. Durante
a contagem os meus olhos acompanhavam o movimento com ânsia de que tudo devia
ser mais rápido.
Entreguei-lhe o único dinheiro que tinha,
quando a contagem terminou. Antes que fosse embora, me disse que poderia ficar
com mais um pacote. Comemorei o presente e saí apressado, feliz e com
expectativas de realização.
Longe dali e de todos, tentando proteger a
possível conquista, sentei num meio fio da rua, na sombra de um tronco de uma árvore
morta. Abri cada pacotinho com os olhos brilhando e com a esperança de
encontrar a minha tão sonhada figurinha chave.
Rasguei um a um, e a cada novo pacote, o medo e
o possível alívio em encontrar ou não à figurinha se confundiam. Por sorte,
achei-a logo no pacote que o senhor da banca havia me dado de brinde.
Senti a felicidade de quem encontra o que
procura. Parei por alguns instantes e logo fantasiei o meu álbum completo, com
as figurinhas já coladas. Percebi a felicidade que isso representaria em minha
infância. Era o álbum dos meus sonhos sendo completado pela figurinha mais
famosa e desejada por todos. Corri e finalmente a juntei ao álbum. Depois da
conquista, levantei da sombra do tronco da árvore e resolvi espalhar a
felicidade conquistada. Comecei mostrando a todos de casa, e logo em seguida
aos garotos da rua.
Havia um garoto, com a minha mesma idade, que
sentia que não gostava muito de mim. Por isso fiz questão de mostrar aos amigos
dele, para que ele soubesse por meio deles, de que o meu álbum estava completo.
Andando na rua, já no final da tarde, o menino
que aparentemente não gostava de mim se aproximou. Me assustei com a sua
chegada, mas não demonstrei, apenas o cumprimentei.
– Olá.
– Olá. – Respondeu de forma antipática. Fitou
os meus olhos como se quisesse testar algo e completou:
– Fiquei sabendo que seu álbum estava completo,
vim lhe parabenizar. Será que poderia vê-lo?
Imediatamente, estiquei o braço curto e fiz
questão de mostrar a minha figurinha chave como um troféu. Naquele dia eu era o vencedor. E todos os outros
garotos, eram meros aspirantes, assim como o garoto que estava na minha frente.
Mas ao ele vê-la abriu um risinho de lado, que
fora aumentando até chegar a uma gargalhada. Uma ira invadiu o meu corpo e com
um tom de raiva perguntei:
– O que foi? Está rindo de quê? Está com inveja
porque completei o meu álbum! Nunca terá um como o meu!
Ele chegou mais próximo a mim, com o mesmo
olhar desafiador e olhou dentro dos meus olhos miúdos e castanhos e disse:
– Esta figurinha não é a original. Ela é a do
ano passado. Não tem validade, não serve mais. Garoto você se enganou. Não
acredito que todo mundo acreditou em você.
Saiu rindo da situação e com um pouco de dó. Minha
raiva transbordou, enquanto o via sumir do horizonte dos meus olhos. Pensei até
em chorar. Achava tudo injusto. O menino que supostamente não gostava de mim,
acabou de destruir um sonho. O meu sonho!
A minha felicidade de um dia realizado se desmanchou em segundos.
Corri até a banca, quase já sendo fechada, e me
encontrei com o senhor dos cabelos ralos. Abordando-o, sem qualquer
cumprimento, praticamente o gritei:
– O senhor me deu um pacote velho, não serve
mais, não há uma figurinha chave!
Com uma expressão tênue e muito apaziguadora
ele me respondeu:
– Eu sei. Te passei este pacotinho velho
imaginando que não prestaria atenção e cometeria o erro de achar que havia
achado a figura certa.
Sem entender e irritado perguntei:
– Mas por que o senhor fez isso comigo? Eu
sofri, sabia!? Agora tudo parece acabado. Agora estou exposto ao sentimento de
conviver sem o que acreditei ter.
Ele me respondeu mais calmamente ainda:
– Simples, porque estava cego querendo muito algo,
que nem sequer percebeu que a figurinha em questão era velha e não se
encaixava no seu álbum, tampouco brilhava e tinha o valor da verdadeira. Quis
te mostrar com isso, que embora esteja cego atrás de algo que queira muito, é
preciso tomar cuidado com as cópias ou com as experiências que parecem verdadeiras.
Não se apresse. És muito novo e completará o seu álbum quando menos imaginar.
Nunca desista, só tenha esperanças com pés no chão. Perceberá que terá tudo em
sua hora.
Observando o meu silêncio e provável absorção
das palavras, continuou:
- Ah, e antes que esqueça, nem tudo vem
facilmente. O menino que te contou a verdade passou por aqui e me contou que
havia revelado a verdade a você. Achou o seu engano cômico, mas ficou
preocupado com o que viu. Preste atenção nele, ele sempre quis ser o seu amigo.
Somente alguém que se importa conosco consegue nos dizer a verdade e ainda sim
se preocupar com as consequências. Dê mais valor às pessoas que gostam de você
e evite se entregar ao inexistente. Hoje não tem ideia de como ele cresce e
toma proporções inimagináveis e, muitas vezes, perigosas.
Novamente parou por uns instantes e pegou o
álbum de minha mão dizendo:
– Não fique com raiva. Mais cedo ou mais tarde,
compreenderá que achar a figurinha chave não é tão fácil, mas procurá-la pode
ser muito bom, se conservar a esperança. Mas não esqueça: se trata de
esperanças com os pés no chão.
O senhor devolveu o meu álbum e deve ter
transferido a calma para mim nesse curto período de conversa. Tanto que sai da
banca pensativo e envergonhado, ao recordar do tom de voz que havia usado com ele
quando cheguei. Em silêncio, continuei caminhando absorvendo o que parecia
difícil, frente ao que sentia.
Um pouco
mais tarde percebi que ele estava certo em tudo. Até mesmo o garoto que julguei
se tornou um grande amigo. Aprendi a controlar mais a minha vontade de encontrar
a figurinha chave. E se me perguntar se achei a tal figurinha, te respondo que
não. No entanto, continuo na busca e sei que um dia a acharei. Mas acima de
tudo tenho esperanças, mas esperanças com os pés no chão.
Aprendi a usar as figurinhas velhas e as
comuns, algumas repetidas, para outros fins. Acredito ter aprendido a ser um
pouco mais alquimista. No final das contas sai ganhando, pois hoje me sinto um
alquimista com esperanças com pés no chão. Pronto para procurar, pronto para
achar.
Já não tenho pressa e não vou correr demais, tudo tem a hora certa para chegar.
Já não tenho pressa e não vou correr demais, tudo tem a hora certa para chegar.
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- Um oi muito mais do que especial
para: Dona Emi, Carla, Rodrigo, e ao Gillian.
- Fantasmas do passado devem ficar
enterrados no passado.
Em 19 de Fevereiro de 2010:
Por mais que todos os dias o Billy
Joel em Vienna me fale: ‘Devagar sua criança louca’, eu ainda assim não
consigo. Pois o movimento da vida não me permite.
só posso dizer que ADOREI !
ResponderExcluir(Sem palavras).
ResponderExcluirVinny, eu nem sei o que vou dizer aqui...Só digo que tudo o que vc escreveu é tão real- e vc sabe disso- que cheguei ao ponto de ficar realmente sem palavras.
Quando a gente cai muito, manter a querida ''esperança com pés no chão'' nem de longe é fácil. Mas o que restará de nós se nossos pensamentos continuarem no passado, remoendo dores ou vendo coisas que não existem?
É questão de encontrar forças onde não há, como uma vez você me falou. É questão de colocar os pés no chão mesmo, sem matar a esperança. Buscar desesperadamente, não mais; apenas continuar essa busca de forma racional, acreditando que REALMENTE tudo tem seu tempo.
Ai...É isso... Eu fiquei muito, muito emocionada com esse texto. Obrigaaaaaaada pela força de sempre, obrigada por ter dedicado também à uma criaturinha que o senhor - sabe-se lá Deus pq- convencionou chamar de ''Dona Emi''! Mandaram te avisar que ela quase teve um surto de choro e disse que vai bater no senhor, hahahhahahha ;P, brincadeiraa!
Beijo grande, fica com Deus!
Oiii Vinny, olha eu aki de novo.
ResponderExcluirGuri! Hj tu te puxou hein. Muiito bom o post, bom mesmo, acho que tu falou o que muitas pessoas precisam ouvir mas estão afobadas demais em busca da figurinha chave. Parabéns seu fubá adoro teu blog.
Bjoks