O jogo




Fazia sol na manhã daquela sexta-feira 23 de fevereiro de 1996. E se soubesse que iria me recordar dela com tanto distanciamento, teria aproveitado mais para observar os detalhes. Recordo do cheiro da palha aquecida do som que os meus pés faziam, quando caminhava no chão seco e esfarelado. Embora perceba que tudo é fruto de momentos singulares, àquela sexta-feira estava acentuada de algum elemento mais forte.
Na região em que vivia, o calor deixara os dias com cores bastante vivas, ao mesmo tempo exalava uma brisa que se assemelhava a uma nuvem, capaz de sugar as energias daqueles que não estão acostumados. Mas no céu, não havia nada além da imensidão azul. O ambiente competia com o meu corpo, numa briga sem vencedores.
Os meus passos lentos ilustrava a brisa quente impulsionando o meu corpo para frente. Percebia o que havia ao meu redor e antes que eu pudesse me prender a um detalhe banal, no meio da uma praça barrenta, visualizei uma mesa de cartas. Por curiosidade, ou talvez por proteção, me aproximei das cartas. Quem sabe quisesse jogar ou adivinhar o futuro. Estando à deriva, não se percebe a gravidade das escolhas.
Sem nada a apostar, comecei a analisar o jogo pronto que estava diante dos meus olhos. Aceitei ficar com um bolo de cartas, sem questionar. Do outro lado, com a cabeça para cima, apoiada numa árvore, havia alguém disposto a jogar. Alguém completamente novo, que supostamente aparecera durante os intervalos entre os dias ou simplesmente num piscar de olhos. Nunca sabemos ao certo como essas pessoas surgem.

Sem ideias de como funcionavam as regras do novo jogo, ou talvez velho, não sabia se corria riscos e o que estava em jogo para ganhar. Ingenuamente, considerei como um momento oportuno para tampar o vazio do tédio, da sexta-feira quente. Não havia tantas intenções de minha parte e nem sei se aspirava à vitória. Estava a beira da ingenuidade ao experimentar o novo.
Momentos depois comecei a jogar. Timidamente e talvez conscientemente, não sei o momento exato em que tudo começou. Porém, sinto que me envolvi ao ponto de perder o controle das minhas jogadas e estratégias. Do outro lado da mesa, havia uma expressão tênue e indiferente, diante de cada nova carta depositada sob a mesa. O silêncio predominou. Ouvia-se apenas o som dos pássaros, do vento balançando as folhas e o barulho da caminhada de outras pessoas sob o mesmo chão esfarelado.
O dia foi mudando de cor e o jogo parecia estar só começando. Já havia tantas cartas na mesa, numa completa e complexa exposição, que me fizera pensar em parar de jogar. Talvez estivesse sendo avisado de que em um jogo o cansaço físico e mental também chegam. Isso e muitas outras coisas, que levam a formação de um perdedor. Desdobrava-me em todas as jogadas e a exposição só aumentava. Do outro lado, a mesma expressão e a mesma indiferença. Parecia não se importar com a minha grande exposição. Com o suor que pingava sob a mesa.
Chegou um momento em que já não queria mais jogar, por sentir a gravidade na pele, e que tudo merecia um rápido fim. Sentia-me incomodado com a exposição demasiada diante de alguém desconhecido. Como não havia apostado nada e como estava dentro de um jogo, senti que não poderia subitamente parar. No entanto, pensei que devia haver uma saída. Tinha que existir. Então decidi reunir um pouco da força que restava e joguei as últimas cartas no ar. Levantei daquela mesa com um ar diferente, não de vencido, nem de cansado tampouco de vencedor, mas da indiferença adquirida.
Não sei se ganhei algo, não sei se perdi. Só sinto que deste jogo não saíram vencedores, tampouco jogadores ávidos. Talvez só tenha saído perdedores. Já que perdi tempo me concentrado nas cartas e deixei o cansaço de cada jogada interferir em meu desempenho. Mas também ganhei a indiferença, que me impulsionou a sair do jogo. Você ficou com algo meu e eu fiquei com algo seu. Não sei se a troca foi justa, porque estava à deriva dos próprios sentimentos e vida.

O dia já não era mais tão pálido e belo como no começo, ou talvez a minha percepção tivesse passado a notar, que já havia nuvens no céu e que as cores agora ansiavam novos tons. Assim como eu, que acabara de entrar em um processo de mudança, bebendo de uma indiferença intensamente adquirida, depois de ter me exposto ao risco de tornar público às próprias expectativas. Depois de sentir as consequências de estar à deriva.





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